sábado, 2 de abril de 2011

Não esqueça de mim


Não esqueça de mim

É um pouco extenso mas vale muito a pena ler.

Toda tarde, com o pôr do sol, a calçada velha e suja de uma casa abandonada, ao lado de uma padaria, era ocupada por uma senhora. Ela tinha uma fisionomia triste e apática, não esboçava qualquer sentimento além do tédio. Sua aparência era suja e desleixada; além de não ter recursos parecia não ter vaidade também, não tinha cuidado consigo mesma. Da maneira que se apresentava era evidente que faltava-lhe de tudo, ela parecia uma bolha armazenando o vazio dentro de si. Poderia dizer mais, se a miséria e a pobreza fossem pessoas, certamente teriam uma filha que seria a cara daquela senhora que mendigava ao lado da padaria.

Se viva fosse talvez ela conseguisse se fazer notar, mas estava morta por dentro e isso se refletia claramente no seu exterior, tão morta que as pessoas passavam pela calçada e se quer notavam sua presença ali. De fato ela se confundia com os postes e arbustos que brotavam das brechas daquela calçada imunda da casa abandonada; aquela senhora havia sido incorporada à paisagem daquele lugar que se assemelhava a ela.

À princípio algumas pessoas 'solidárias' (ou alguma coisa que, ironicamente, distorça o sentido da palavra) sacudiam-lhe moedas ou restos de comida, sempre mantendo uma certa distância, como se tivessem nojo ou medo daquela senhora morta-viva. Ela, mais morta do que viva, nem se mexia, apenas fixava um ponto no infinito e contemplava o nada.

Logo as pessoas passaram a ignorá-la, alguns julgavam-na louca, apesar de os loucos costumarem gritar, falar coisas sem sentido ou agirem com agressividade. Louca ela não era, poderia ser qualquer coisa diferente disso, mas ninguém estava preocupado em saber o que ela tinha, não queriam perder seu tempo com isso, era mais fácil fingir que ela não existia, ignorá-la.

Os dias passam, se repetem ciclicamente, dia e noite, e à cada entardecar lá está ela, no mesmo local, na mesma calçada suja, 'olhando pra o nada'. Ninguém sabia de onde aquela criatura vinha e pra onde ia ao fim do dia. Na verdade ninguém mais enxergava ela, estavam preocupados com coisas mais importantes como o novo hit das rádios, quem foi eliminado no paredão do big brother ou qul a nova surpresa do mc lanche feliz.

Um dia um garoto que mora na frente da padaria vai lá comprar pão, como estava apressado para um compromisso ele pede que Maria, a moça que trabalha em sua casa, espere por ele no portão pra pegar a sacola de pão. Ela fica aguardando que ele volte, enquanto o observa de longe. O garoto, sempre muito vivo, nunca foi de enxergar pontos no infinito e nem contamplar o nada; carregava no rosto sempre um belo sorriso, apesar dos problemas e angústias que carregava no peito.

Enquanto aguardava que a movimentação de carros se acalmasse e ele pudesse atravessar a rua com segurança, o garoto observava de longe, do outro lado da rua, uma senhora na calçada da casa abandonada, ela parecia carregar toda a miséria do mundo em seu semblante, aliás, toda não, a maioria apenas, pois uma pequena parte dessa miséria o garoto carregava disfarçadamente em seu coração. O garoto atravessa a rua olhando fixamente pra aquela pobre senhora, e compartilha com ela a sensação de miséria, tão evidente naquela figura abandonada.

À medida em que se aproxima dela ele é inundado de pensamentos, ele penetra nos pensamentos dela e vê inúmeras imagens se sucedendo rapidamente. Ele a vê um pouco mais jovem, arrumada, bem vestida, ela discute com o marido que, alcoolizado, a espanca. Há crianças chorando, o garoto pode ouvi-las claramente nos seus pensamentos. Depois, caminhando pela pequena e modesta casa daquela senhora, o garoto pode ver os seus filhos já crescidos, ela está também um pouco mais madura e apreenssiva com os filhos os quais estão envolvidos com o crime e com as drogas. Logo em seguida o garoto passeia por um velório, era o marido daquela senhora que era velado, mas a mesma não compareceu ao enterro, estava perdida, sem seu emprego de lavadeira, seus filhos sumiram no mundo, alguns morreram por conta do crime e das drogas, outros simplesmente saíram de casa abandonando-a à própria sorte.

Outras cenas se passam rapidamente diante dos olhos daquele garoto, tudo é muito rápido e vê aquela senhora envelhecendo e logo estaria ali naquela calçada ao lado da padaria. O garoto presencia toda aquela mudança, assustado, e sente o peso do vazio que se transformou a vida daquela senhora, de repente os pensamentos somem como nuvens de fumaça se dissipam no céu azul.

O garoto desperta, e entra na padaria. Ele compra o pão, olha Maria no portão lhe aguardando e vai atravessar a rua para entregar-lhe a sacola. Ele muda de idéia no caminho, dá meia volta, entra na padaria, compra pão doce e se direciona à senhora, ela está sentada na calçada fazendo o que só sabe fazer, olhar o nada.
Ele se aproxima e pergunta:
- Quer pão doce, senhora ?
Ela sequer pisca os olhos. Ele insiste, se senta ao seu lado e diz:
- É pra adoçar um pouco as amarguras da vida.
Nesse momento ele olha ao seu redor e percebe que todos estão espantados com o fato dele ter sentado naquela calçada imunda pra conversar com uma mendiga que ainda por cima nem lhe dá bola. Ele nem se preocupa com isso, apenas constata a desumanidade que o rodeia quando é surpreendido pela senhora que pega o pão doce da mão dele.

Ela poderia ter dito alguma coisa, mas não disse nada, e nem precisava pois aquele garoto tinha a sensibilidade necessária pra ler seus pensamentos. Lia claramente todos eles. A senhora estava sentindo um imenso alívio, por um momento alguém ouvira suas súplicas e por isso ela sentia-se um pouco viva, ao menos naquele instante; alguém enfim dera alguma atenção à sua miserável existência e era apenas isso que ela esperava por todo esse tempo, que alguém lhe desse algum valor, que alguém a tratasse como gente e não como uma mendiga miserável numa calçada imunda. Ela só queria ser tratada como gente.

O garoto, diferente das outras pessoas, não tinha nojo ou medo dela, ao contrário, ele tinha até uma simpatia por ela como se a conhecesse de algum lugar, de algum tempo passado. Ele a convidou para um passeio, ela poderia ter respondido com palavras, mas seu sorriso foi a confirmação que ele precisava. Sim, ela arrancou dela um sorriso, coisa que jamais alguém ousou pensar em fazer.

Ela se levanta da calçada e se segura na mão dele, que se apóia no poste e dá um giro em torno do mesmo. Como num passe de mágica a paisagem se transforma, surgem frondosas árvores, repletas de frutos suculentos, o verde toma conta daquela avenida movimentada, brotam do solo rios sinuosos, o sol brilha sem fazer calor. Eles correm, sorriem, felizes, como se nada daquilo existisse mais, nem calçada imunda, nem semblante miserável, nem tristeza, era só alegria agora.

Diante daquela nova paisagem que se construira diante deles, a senhora não mais ostentava aquela aparência de outrora, vestia um belo vestido, estampado com flores, seus cabelos eram longos e cacheados, presos num penteado elegante, sua pele era viçosa e corada, seus lábios sorriam e seus olhos, antes cansados, fixos e sem vida, agora brilhavam como diamantes.

Eles passearam bastante por aquela bela paisagem e cansaram, sentaram-se num trilho de trem abandonado que cortava o chão e era invadido pelo mato. Ao se sentarem o trilho pareceu suspenso no céu azul de poucas nuves, sentiam as pernas suspensas, balançando no ar e abriram os braços pra sentir o vento correndo pelos seus corpos. A sensação de liberdade era indescritível, tão boa que ambos fecharam os olhos pra percebê-la melhor. De olhos fechados eles pareciam nem perceber que agora estavam numa nave supersônica que rumava àquela dimensão em que havia uma padaria, uma calçada e Maria aguardando a sacola de pão na porta de casa.

O garoto sente que está balançando e por isso abre os olhos, ele estranha o fato de estar no balanço que fica no quintal de casa.
- Como vim parar aqui ? - Ele se pergunta. Cadê aquele trilho de trem, aquelas árvores, aquela senhora sorrindo pra mim ?
Ele olha ao seu redor com estranhamento, não se lembra de ter voltado da padaria, não se lembra de ter saído daquela bela paisagem e ter retornado ao 'seu mundo'. Por um instante ele até se pergunta se de fato foi à padaria comprar pão, como se duvidasse de tudo aquilo que aconteceu, mas no seu íntimo ele sabe e sente que de alguma maneira tudo aquilo aconteceu; realmente não saberia explicar COMO aconteceu, mas sabe e sente aconteceu.

Maria dá um grito e interrompe seus pensamentos:
- Já vou garoto, obrigada por ter comprado o pão que lhe pedi.
Assim ele constata que de realmente foi à padaria e por consequância tudo aquilo de fato ocorreu.
- Maria, você viu aquela senhora com fome de humanismo na calçada ao lado da padaria ? - Perguntou ele, querendo levantar evidências concretas sobre o ocorrido.

- Senhora, que senhora ?

- Aquela que estava na calçada da casa abandonada, você não me viu conversar com ela ?

- Tá ficando doido, menino ? Não tinha ninguém na calçada da casa abandonada, só tem mesmo a roseira que tua vó cuidava até falecer, só ela mesmo que agoava a pobrezinha, mas acho até que a roseira já morreu, tá tão sequinha, coitada. Não quero nem pensar o que tua vó ia sentir se por acaso visse ela do jeito que tá.


PS:
Eu não esqueci dela, Jamais esquecerei.

Hoje é meu aniversário!


[Mente Hiperativa]

4 comentários:

  1. Como sempre surpreendendo com suas histórias...
    Feliz aniversário!!!!!
    Cuide bem da roseira!!!!
    Abraços...

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  2. Viajei com a história. Consigo imaginar a roseira lá, linda. E viva.

    Feliz.idade, meu querido. O melhor da vida pra você, sempre.

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  3. já li e achei muito especial a estória, SINGULAR, realista1 Viajada

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